Direito Ambiental - Marco Temporal: entenda o histórico debate acerca do direito indígena às terras.


 

Alvo de debates atuais de extrema relevância, a Teoria do Marco Temporal é corrente argumentativa de forte relevância, seja para o setor ruralista, seja para os povos indígenas. Adotada pelo já aposentado Ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, a referida teoria define a data de 05 de outubro de 1988 como marco de "criação" do direito à terra dos indígenas. Se, por um lado, os defensores dessa tese compreendem-na como fixadora de necessária segurança jurídica em situações de conflitos fundiários, as críticas a tal definição entendem que a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 não traria a criação de um direito, mas sim o seu reconhecimento - colocação essa pautada na chamada teoria do indigenato.


O chamado "fato indígena", referência para a existência ou não de indígenas ocupantes de um território, à época do Marco Temporal, não abrangeria, como terra "tradicionalmente ocupada", aquelas que foram apossadas em épocas pretéritas ou futuras ao Marco (Promulgação da CF/88). Para essa teoria, assim, é necessário que nessa data já fosse corrente a ocupação pelos povos. O Relator do caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, à época em que esse tema foi julgado perante o STF, colocou que tal marco objetivo refletiria o "propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena".

Atualmente, vê-se a volta desse debate em dois importantes espaços: no Supremo Tribunal Federal e nas casas legislativas.
No STF, o Leading Case: RE 1017365, sobre os Xokleng, ainda está em fase de julgamento, já tendo ocorrido algumas sessões na qual foi atendido o pedido de sustentação oral de cerca de setenta "amicus curiae", tamanha é a relevância do caso. Já foram proferidos os votos de dois Ministros: Edson Fachin, relator, e Nunes Marques. No momento, o julgamento está suspenso em razão do pedido de vistas do Ministro Alexandre de Moraes, tendo o Ministro Fachin votado de maneira contrária ao estabelecimento do marco temporal e Nunes Marques, a favor.

Para o Min. Edson Fachin, admitir a teoria do marco temporal seria negligenciar importantes brechas acerca da temática, generalizando diferentes povos e dando abertura ao desfalque do princípio da máxima eficácia das normas constitucionais. Já para o Min. Nunes Marques, desaprovar a teoria do Marco agravaria a insegurança jurídica no tocante aos conflitos fundiários, não podendo a posse indígena ser confundida como posse imemorial, devendo, portanto, haver a comprovação do fato indígena à época da promulgação da CF/88.

Nessa toada, o veredito da corte é imprescindível, visto que pode "pacificar" conflitos normativos e uniformizar a jurisprudência, uma vez que terá repercussão geral. Se, por um lado, o não acolhimento da tese traria, ao olhar dos simpatizantes do marco, um cenário de certa "crise" para o setor econômico envolvido em disputas fundiárias, críticos ao Marco Temporal, por sua vez, entendem que a recepção dessa corrente (que já vem sendo utilizada desde o caso da Raposa Serra do Sol por alguns tribunais, de maneira dispersa) contraria os direitos originários dos povos indígenas, visto que muitos foram expulsos de suas terras.

Voltando os olhares para as casas legislativas, o marco temporal é trabalhado no Projeto de Lei 490/2007, proposto por Homero Pereira, ex-deputado, que aspira a alteração da Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio). Tal PL possui numerosas ramificações apensas, e, uma das mais polêmicas, o PL 1218/2007, dispõe - em seus § 4º, I a IV e § 5º - que a delimitação da área indígena será realizada por demonstração objetiva de que as terras dos índios são por eles habitadas em caráter permanente, à luz do marco temporal, vedada a ampliação de área indígena, salvo em terras públicas da União, respeitados, ainda, requisitos como "ser utilizada para suas atividades produtivas; ser imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar; ser necessária à sua reprodução física e cultural; e, finalmente, ser coerente a seus usos, costumes e tradições".

Reconhecidamente o direito constitucional (às terras indígenas) tem enfrentado significativa resistência quando de sua implementação, eis que envolve o enfrentamento de outros direitos constitucionais como o direito à propriedade e à sua função social (art. 5o, XXII e XXIII). Com todo o exposto, percebe-se a relevância de tais diálogos no desenhar da perspectiva institucional desses casos - seja em debates legislativos, seja perante os tribunais nacionais.

Enquanto isso, o PL ainda não foi aprovado - e sequer o julgamento que corre no STF foi encerrado. Por ora, assim, vive-se em incerteza jurídica.
Caso as decisões se coadunem à do Ministro Relator Edson Fachin, o precedente da Raposa Serra do Sol não será vinculativo - pois entende-se que existe clara especificidade que não deve ser generalizada, em respeito à autodeterminação dos povos indígenas. Caso contrário, haver-se-á ratificação de importante decisão para a estruturação da teoria do Marco Temporal. Inegavelmente, esse é um momento de extrema magnitude na história constitucional brasileira; seja qual for a decisão do STF, assim como aprovado ou não o PL, esses serão crivos notórios para a resolução dos conflitos fundiários e da demarcação de terras indígenas.

Texto: Beatriz Casado, estagiária em Pires Advogados e Consultores. Revisão: Fernanda Barreto Campello, advogada em Pires Advogados e Consultores.

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Referências:
AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Comissão aprova novas regras para demarcar terras indígenas. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/120395-comissao-aprova-novas-regras-para-demarcar-terra-indigena/. Acesso em 10 de setembro de 2021.

CONGRESSO NACIONAL. PROJETO DE LEI No 5386, DE 2020 - Do Sr. NELSON BARBUDO: Dispõe sobre o direito de realocação de não índios ocupantes de terras tradicionalmente ocupadas por índios. Disponível em:

CONGRESSO NACIONAL. Projeto de Lei 1218/2007 - Disciplina a demarcação das terras indígenas, nos termos estabelecidos pelo art. 231 da Constituição Federal. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=465648&filename=PL+1218/2007 . Acesso em 10 de setembro de 2021.

DANTAS, Carolina. Xokleng: povo indígena quase dizimado protagoniza caso histórico no STF. Disponível em: (https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/06/29/xokleng-o-povo-indigena-quase-dizimado-em-santa-catarina-que-protagoniza-caso-historico-no-stf.ghtml) Acesso em 09 de setembro.

NOGUEIRA, Caroline Barbosa Contente; MASSULO, Débora Silva. A TEORIA DO INDIGENATO VS TEORIA DO FATO INDÍGENA (MARCO TEMPORAL): BREVE ANÁLISE DESDE A PERSPECTIVA DO COLONIALISMO INTERNO. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-do-indigenato-vs-teoria-do-fato-indigena-marco-temporal-breve-analise-desde-a-perspectiva-do-colonialismo-interno . Acesso em 10 de setembro.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro Fachin considera que posse da terra indígena é definida por tradicionalidade, e não por marco temporal. Disponível em:

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